O testemunho de Ricardo Piglia em “Um dia na vida”
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https://doi.org/10.61389/revell.v1i37.7741Palavras-chave:
Literatura argentina, Ricardo Piglia, TestemunhoResumo
As escritas de si têm desempenhado um papel significativo na literatura, permitindo aos autores explorar suas próprias experiências de vida e oferecer insights profundos sobre a condição humana. Esses escritos desafiam os limites entre a realidade e a ficção, convidando o leitor a adentrar na intimidade do autor e a refletir sobre questões universais através das lentes individuais. Além disso, também desempenham um papel crucial na preservação da memória coletiva e na construção de uma narrativa histórica mais abrangente. Ao compartilhar suas experiências pessoais, os autores fornecem testemunhos vivos de eventos e contextos históricos, contribuindo para a compreensão e reflexão sobre determinados períodos e culturas. Essa interseção entre o individual e o coletivo enriquece a literatura e possibilita um diálogo profundo entre o passado, o presente e o futuro.
Neste contexto, um trabalho literário que se destaca é a trilogia Os diários de Emilio Renzi, escrita pelo argentino Ricardo Piglia. Piglia é considerado referência na literatura contemporânea argentina, por ter escrito obras como Respiración artificial (1980) e Plata quemada (1997). Além de escritor, era professor, editor, crítico literário e grande estudioso da literatura de seu país. Ao longo de sua vida, Piglia dedicou-se à escrita de diários íntimos, registrando experiências e reflexões pessoais. Esses registros, que totalizam 327 cadernos, foram cuidadosamente organizados e transcritos para três livros, enriquecidos com detalhes, introduções e textos inéditos, todos assinados pelo personagem assíduo de sua obra, Emilio Renzi.
As obras que compõem a trilogia, Años de formación (2015), Los años felices (2016) e Un día en la vida (2017), foram publicadas no Brasil pela editora Todavia, nos anos 2017, 2019 e 2021, respectivamente. Nestas obras, Piglia reflete sobre diversos temas como literatura, identidade, memória e a própria escrita. Suas reflexões são desafiadoras e nos oferecem uma visão singular sobre a vida de um escritor e os prós e contras do processo criativo. Ao longo de seus diários, o autor transita entre 1ª e 3ª pessoa verbal para falar sobre si, resultando em um distanciamento, uma cisão. Piglia fala sobre “viver em terceira pessoa” e, desse modo, estabelece um duplo: Piglia/Renzi, eu/outro: “o tempo todo me espanto, como se eu fosse outro (e é isso que eu sou)” (PIGLIA, 2017, p. 224). O mesmo discurso permanece no último tomo da trilogia: “Falo e sou outro, estou afastado de mim [...]” (PIGLIA, 2021, p. 111). Assim, Piglia ancora-se em outro para escrever sobre si, apresentando-se como um “biógrafo de si mesmo”, o que torna o texto paradoxal. Vale ressaltar que essa cisão já se manifesta no ato de Piglia desarquivar seus cadernos e realizar um trabalho de reescrita, posto que aquele que revisita os diários e os reescreve já não é o mesmo captado no momento da escrita, tampouco aquele que foi escrito, é de fato, um outro, um “isto foi”, pensando na teoria da fotografia, de Barthes (2017).
Tomarei como foco aqui o último volume da trilogia, Um dia na vida (2021), que encerra de forma magistral a saga iniciada nos tomos anteriores. A obra está dividida em três partes: I. Os anos da peste, que apresenta alguns fragmentos de diários, datados de 1976 a 1982; II. Um dia na vida, narrativa em que Renzi fala sobre si em terceira pessoa; e III. Dias sem data, composta por relatos aleatórios da vida do personagem, como sua última aula ministrada em Princeton e o surgimento da Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença que afetou sua mobilidade e comunicação.
Em Os anos da peste, Piglia nos conduz por um labirinto de memórias e reflexões sobre a última ditadura militar argentina, principalmente. O título do capítulo faz referência à obra A peste, de Albert Camus. A peste é uma metáfora utilizada pelo autor para definir uma “praga que assolava uma comunidade em consequência de um crime perpetrado na própria sede do poder do Estado. Um crime estatal que provoca nos cidadãos – sob a forma de uma epidemia – o terror e a morte.” (PIGLIA, 2021, p. 13). Desse modo, os anos da peste são os anos sombrios em que os cidadãos argentinos sofrem desse mal estatal que aterroriza a sociedade. Temas como a repressão, a censura e a violação dos direitos humanos são abordados pelo autor, que, gradativamente, revela as consequências do regime militar sobre a sociedade argentina, contando o que viu e viveu nesse período. Assim, os cadernos de Renzi, como ele próprio reconhece, servem como um testemunho literário desse tempo, de modo a oferecer uma visão poderosa e crítica sobre a história argentina:
A peste, portanto, e nós, testemunhas, contamos o que vivemos naquele tempo sombrio; meus cadernos são um registro alucinado e sereno da experiência de vida em estado de exceção. Tudo parece continuar igual, as pessoas trabalham, se divertem, se apaixonam, se distraem e não parece haver sinais visíveis do horror. Isso é o mais sinistro, sob uma aparência de normalidade, o terror persiste e a realidade cotidiana continua aí como um manto, mas às vezes um vazamento deixa ver a verdade crua. (PIGLIA, 2021, p. 14-15)
Piglia observa que, apesar de tudo aparentar normalidade no início da ditadura, o terror persiste oculto por trás de uma fachada cotidiana. Por isso, também, ele precisa narrar e dar seu testemunho. Esse fragmento nos lembra da importância de documentar e dar voz às vivências em momentos de repressão e opressão, visando preservar a memória histórica e desvendar a realidade por trás das aparências.
Em meio a todo o horror, amigos de Renzi desapareciam e exilavam-se, no entanto, mesmo correndo riscos, ele resiste ao exílio e permanece na Argentina. Nesse período, acompanhamos ainda os bastidores da criação da célebre obra de Ricardo Piglia, seu primeiro romance, Respiración artificial. O escritor, na voz de Renzi, compartilha suas primeiras ideias e fornece detalhes sobre a produção dos capítulos, as alterações feitas, a finalização, a expectativa de publicação e o medo da censura, posto que a obra trata da ditadura argentina sem mencioná-la diretamente. Essas colocações permitem que o leitor entenda melhor o processo criativo de Piglia, de modo a adquirir uma perspectiva mais profunda sobre as motivações, as escolhas artísticas e o processo de transformação de ideias do autor ao escrever sua obra.
Em Um dia na vida, Renzi cede a palavra a outro narrador e sua vida passa a ser contada integralmente em terceira pessoa. O capítulo inclui fragmentos de cartas, sonhos e a narrativa de um barman que costumava servir Renzi e observá-lo no bar em que frequentava. Também são apresentadas reflexões ensaísticas sobre temas como memória e esquecimento, produzidas a partir das aulas ministradas por Renzi.
O capítulo abrange diferentes dias da vida de do escritor, tornando difícil identificar sobre qual dia em particular o título se refere. No entanto, podemos supor que seria o dia da morte de seu primo Horacio, considerado seu "duplo fraternal". Renzi se sente culpado por não ter feito o suficiente para impedir a morte de seu primo e carrega o peso dessa culpa, o que o deixa amargurado e traumatizado.
O tema da morte de Horacio abre o capítulo e é retomado ao longo de toda essa segunda parte do tomo. Renzi é levado a relembrar este fato e, com isso, passa a refletir sobre os infortúnios e as alegrias do esquecimento. Ele quer esquecer, deixar esse passado para trás e acredita que precisa narrar para apagar essas lembranças: “Se você consegue narrar, está salvo. É preciso repetir para não lembrar. Não lembrar (a morte de Horacio?), esquecer é uma arte como qualquer outra” (PIGLIA, 2021, p. 185, grifo meu). O remorso de Renzi é tão grande que ele finaliza o capítulo com uma confissão ao padre, admitindo: “Eu me sinto um criminoso, carrego um morto na consciência [...]” (PIGLIA, 2021, p. 262). Em seguida, após o término da confissão, Renzi se sente aliviado, “puro e a salvo”, segundo o narrador, e pronto para iniciar o próximo capítulo.
Um ponto muito interessante presente na segunda parte do livro de Piglia é a descrição do trabalho de transcrição dos diários de Renzi. Acompanhamos o personagem transformando seus cadernos no que agora temos em nossas mãos: seu romance, o que atribui à obra um caráter metaficcional. Além disso, Piglia insere um fragmento peculiar em seu livro: um texto crítico sobre os diários de Emilio Renzi. Somos apresentados a um fragmento sobre o chamado Livro do naufrágio, que corresponde aos diários de Renzi. O texto, escrito em linguagem formal, aborda a descoberta do livro por dois pescadores que o encontram entre ruínas e o impacto que essa descoberta causa. O autor constrói um texto informativo e crítico sobre os diários, considerado por estudiosos (no universo do relato, após sua descoberta), como “um dos testemunhos mais antigos da prática literária nos tempos de expansão da cultura web” (PIGLIA, 2021, p. 249).
Em seguida, o leitor passa a compreender a gênese desse relato sobre o descobrimento do diário e o motivo pelo qual ele foi inserido na narrativa. Tudo foi resultado de um sonho de Renzi, que optou por registrá-lo e incorporá-lo ao seu livro como uma espécie de conto ensaístico sobre a própria obra. Com isso, Piglia apresenta uma autoreflexividade narrativa, própria da metaficção que, segundo Hutcheon (1984), consiste em uma ficção que inclui em si um comentário sobre sua própria narrativa ou identidade linguística. Assim, o texto possui um viés metalínguistico, uma vez que traz reflexões e discussões sobre a própria linguagem e sobre o processo de construção da obra.
A última parte dos diários de Emilio Renzi, intitulada "Dias sem data", encerra a série com uma estrutura dividida em 11 partes. Narrado em primeira pessoa, o capítulo apresenta fragmentos não datados organizados por temas. Essas anotações abrangem os últimos anos do escritor, mesclando memórias felizes com relatos dos melancólicos dias da "queda" de Renzi, termo utilizado no último fragmento para descrever o período em que ele esteve doente.
Ao longo do capítulo, testemunhamos o personagem sendo progressivamente afetado pela ELA: “Morrer é difícil, algo está acontecendo comigo, não é uma doença, é um estado progressivo que altera meus movimentos. Isto não está funcionando. Começou em setembro do ano passado, não conseguia fechar os botões de uma camisa branca” (PIGLIA, 2021, p. 310). Conforme os dias passam, a situação se agrava cada vez mais: “os dedos pararam de obedecer” [...]. A mão direita está pesada e indócil, mas consigo escrever. Quando não conseguir mais...” (PIGLIA, 2021, p. 310-311). Piglia descreve o estado progressivo que afeta seus movimentos físicos. Através dessas palavras, sentimos a percepção do autor sobre sua própria condição e a conscientização de que algo está se transformando dentro dele. O ato de não conseguir fechar os botões de sua camisa, por exemplo, revela a gradual perda de habilidades e o impacto dessas mudanças em sua vida. Esse fragmento desperta reflexões sobre a finitude humana e a luta contra os efeitos debilitantes da doença, evidenciando a batalha enfrentada diante da inexorabilidade da condição.
Além disso, assim como em seus diários anteriores, Renzi, ao longo de Dias sem data, narra sobre o processo de criação, compartilha reflexões sobre suas leituras e cita frases de grandes escritores, como Tchékhov, Tolstói, Beckett, Kafka, Hemingway, etc. Nesse conjunto de relatos, somos levados a testemunhar a despedida de Renzi em Princeton e seu retorno à Argentina, seu país de origem, agora redemocratizado. Ademais, o autor também nos conduz por suas reflexões acerca do gênero diário:
Depois de tantos anos escrevendo nestes cadernos, comecei a me perguntar em que tempo verbal eu deveria situar os acontecimentos. Um diário registra os fatos enquanto eles ocorrem, não os rememora nem os organiza narrativamente. Tende à linguagem privada, ao idioleto. Por isso, quando lemos um diário, encontramos blocos de existência, sempre no presente, e só a leitura permite reconstruir a história que se desenrola invisível ao longo dos anos. Mas os diários aspiram ao relato e nesse sentido são escritos para serem lidos (mesmo que ninguém os leia). (PIGLIA, 2021, p. 278)
Neste trecho, Piglia ressalta que os diários aspiram ao relato, ou seja, eles têm a vontade intrínseca de se tornarem narrativas, mesmo que sejam destinados a uma audiência potencialmente inexistente. Essa dualidade é fascinante, pois revela a ambiguidade inerente ao ato de escrever um diário. Por um lado, ele serve como um espaço íntimo de expressão pessoal, onde o autor pode despejar seus pensamentos, emoções e reflexões sem restrições. Por outro lado, há a esperança de que alguém, mesmo que no futuro distante, possa ler essas palavras e compartilhar da experiência do autor. Dessa forma, Piglia nos convida a refletir sobre a complexidade do gênero diário, que transcende sua função inicial de registro pessoal.
Em Um dia na vida, Piglia, por meio de Renzi, explora a intersecção entre a vida pessoal e a esfera pública, oferecendo um relato sobre si e um retrato da sociedade argentina e do contexto histórico em que a narrativa se desenrola. Assim, seu texto está ligado à reconstrução do presente e do passado e possui uma relação intrínseca com o testemunho, uma vez que traz consigo o relato de sua experiência pessoal. Segundo Derrida (2015), um testemunho “diz, na primeira pessoa, o segredo, partilhável e impartilhável, do que me aconteceu, a mim, só a mim, o segredo absoluto do que estive em posição de viver, ver, entender, tocar, sentir e ressentir” (DERRIDA, 2015, p. 52), sendo, portanto, a experiência algo fundamental para sua existência.
É importante ressaltar que Piglia utiliza uma abordagem literária e ficcional em sua escrita, o que significa que os Diários de Emilio Renzi não devem ser interpretados como um registro estritamente autobiográfico, mas sim como uma construção narrativa que incorpora elementos reais e fictícios, incluindo o testemunho como uma das ferramentas para explorar a condição humana e a sociedade.
Por fim, Um dia na vida é uma leitura que exige atenção e envolvimento do leitor, mas recompensa generosamente aqueles que se entregam à experiência. Piglia nos desafia a questionar nossas próprias percepções da realidade e a refletir sobre escrita, memória, política, arte e relacionamentos. A obra é um exemplo notável da maestria literária de Piglia que, mais uma vez, demonstra sua habilidade em explorar diferentes formas e estilos narrativos, aprofundando-se em temas universais de uma maneira singular. Para os amantes da literatura contemporânea, Um dia na vida é uma leitura indispensável, que provoca, emociona e nos convida a mergulhar nas profundezas da mente e do coração de Emilio Renzi/Ricardo Piglia.
Referências
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
DERRIDA, Jacques. Demorar: Maurice Blanchot. Tradução Flavia Trocoli e Carla Rodrigues. Florianópolis: Editora UFSC, 2015.
HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. New York: Methuen, 1984.
PIGLIA, Ricardo. Anos de formação. Tradução de Sergio Molina São Paulo: Todavia, 2017.
PIGLIA, Ricardo. Um dia na vida: os diários de Emilio Renzi. Tradução de Sergio Molina. São Paulo: Todavia, 2021.
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