Jean-Paul Sartre: a imaginação como modo de existir e de educar
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https://doi.org/10.26514/inter.v11i33.4340Resumo
É bem provável que muitos dos leitores que estão se debruçando pela primeira vez na leitura desta resenha já tenham se deparado com algumas expressões bastante conhecidas do arcabouço intelectual do filósofo francês Jean-Paul Sartre como “o homem está condenado a ser livre” ou “não importa o que a vida fez de você, mas o que você fez do que a vida fez de você” ou mesmo “O inferno são os outros”, somente para citarmos algumas delas.
Sem sombras de dúvidas, Jean-Paul Sartre, que é o título principal da tese defendida por Liliane Barros de Almeida Cardoso que é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás com mestrado e doutorado em Educação pela mesma instituição e com uma larga experiência profissional no campo educacional, foi um dos maiores pensadores do século XX e, certamente, o maior representante do existencialismo francês ao lado de pensadores do porte de Albert Camus e Simone de Beauvoir. Para Sartre, que nos deixou um legado de grandes obras filosóficas, literárias e teatrais, a exemplo do Ser e o Nada, A transcendência do ego, A Náusea, O Muro e Entre Quatro Paredes, nada nem ninguém determina ou fundamenta a existência do homem que primeiro existe para depois tornar-se quem ele é.
Apesar de Sartre não ter escrito nenhum texto destinado diretamente ao campo da educação não é de se estranhar que o seu pensamento possa servir como ponto de partida para se pensar e refletir sobre uma concepção de educação que não se conforme com a reprodução, adequação, adaptação ou conformação do sujeito à realidade dada, mas que, pelo contrário, provoque nele a necessidade de transcender a realidade e a concretude do mundo, de modo a torná-lo cada vez mais livre, autônomo e responsável pela constituição do seu projeto existencial.
Embora Liliana reconheça que “[...] o diálogo entre a filosofia de Sartre e o tema da educação se constitui um grande desafio” (p.16), a pesquisadora construiu uma sólida e consistente ponte de articulação entre essas duas áreas do conhecimento, propondo-se a pensar a educação como uma “[...] atitude de liberdade, de disposição, de abertura ao mundo, ao novo e ao inexistente” (p.11). Dessa forma, a leitura desta tese pode ser utilizada como uma primeira porta de entrada, inclusive para os leitores neófitos das referidas áreas que tenham interesse em compreender a filosofia sartriana que busca, de modo geral, dar voz e vez aos sujeitos, incitando-os a tornarem-se cada vez mais livres e a assumirem a total responsabilidade por todas as suas ações e decisões.
Para pensar a educação sob a ótica sartriana, Liliane formulou algumas perguntas chave que nortearam todo o percurso de construção de sua pesquisa doutoral, a saber: (1) será que Sartre tem algo a dizer em relação aos desafios educacionais contemporâneos? (2) Seu pensamento tem consistência para pôr questões aos problemas atuais da educação? (3) Como encontrar bases para a aproximação com a educação?
Com o propósito de responder a estas questões norteadoras, Liliane realizou uma rica e profunda revisão de literatura, utilizando-se de referenciais bibliográficos de cunho filosófico no qual ela identificou, explicou, detalhou e ilustrou conceitos que até podem parecer complexos no primeiro momento, especialmente para os leitores neófitos da filosofia existencialista sartriana, mas que são fundamentais para se entender as bases teóricas e conceituais dessa escola filosófica.
Nesta empreitada, Liliane revisitou tanto conceitos da fenomenologia trabalhados dentro da perspectiva de Edmund Husserl quanto obras de importantes comentadores brasileiros e estrangeiros que se dedicam ao estudo e a análise da filosofia existencialista sartriana como Ideu Moreira Coelho, Fábio Caprio de Castro, Walter Matias Lima e Franklin Leopoldo e Silva. Entre os estrangeiros, a tese esboçou concepções elaboradas por Paul Ricoeur, Philip Thody, István Mészáros, Francis Jeanson, Guiles Deleuze e Annie Cohen-Solal.
Assim como já destacamos alguns aspectos do título principal da tese, o subtítulo do documento é revelador da criatividade e da originalidade de sua autora, a saber: A imaginação como modo de existir e de educar. Se, para Sartre, somos seres lançados ao mundo não havendo nada nem ninguém que nos determine anteriormente, também somos seres, na concepção do filósofo, da liberdade e, como tal, seres da superação do estabelecido; da transgressão do determinado; da contestação do ditado e esse movimento da liberdade torna-se possível por meio de um esforço da consciência para superar a si mesma, atribuindo significado a tudo aquilo que está fora dela mesma; a tudo que constitui o mundo.
Para tratar sobre a importância da imaginação em nosso modo de existir e de educar, Liliane traçou um percurso teórico-metodológico ancorado em três grandes capítulos intitulados: A constituição da filosofia sartriana; A obra sartriana e o primado da imaginação e Imaginação e liberdade: condição primordial da ação educativa. Além desses três capítulos de revisão, a tese é constituída por um capítulo introdutório, no qual a autora expõe o problema de pesquisa, os objetivos e a justificativa e um capítulo final, no qual são esboçadas as principais análises em relação às articulações entre a filosofia existencialista de Sartre e o papel da imaginação para as ações educativas.
De modo a compreender as bases conceituais sob as quais se assenta a filosofia sartriana, Liliane trouxe uma pertinente discussão sobre os fundamentos da corrente fenomenológica que muito encantou Sartre desde que ele ouviu de Raymond Aron, em um dos bares das famosas ruas de Paris, que ele poderia fazer filosofia a partir da taça na qual eles estavam bebendo os seus vinhos. Sartre ficou encantado com as explicações de Aron sobre a fenomenologia porque, desde a sua formação inicial, ele só tinha se deparado com um tipo de filosofia “[...] abstrata demais, cheia de definições que pouco diziam sobre a vida”. Entretanto, ao encontrar a fenomenologia, Sartre “[...] percebeu que havia encontrado o oposto disso, ou seja, uma filosofia que pensava os objetos, a vida e o cotidiano” (p.26).
Foi justamente essa busca por uma filosofia com os pés no chão que contribuiu para Sartre por em operação o conceito de intencionalidade, derivado da fenomenologia, que corresponde a uma espécie de movimento ativo da consciência para dar significado a tudo que está fora dela; a tudo que está objetado no mundo. Dessa maneira, colocar o homem, a vida e o mundo sob um grande parêntese, fazendo a redução fenomenológica (epokhé) no intuito de encontrar a essência das coisas (eidos) foi, certamente, o que motivou Sartre a pensar a respeito do papel ativo da consciência e o seu potencial transcendental da realidade.
Se, para Sartre, o homem, inicialmente, não é nada, a consciência exerce um papel ativo na constituição desse ser. A consciência ou o “para-si”, que é um termo técnico-filosófico do arcabouço teórico e conceitual do filósofo e utilizado pela Liliane em sua tese, representa uma consciência que supera a si mesma “[...] evadindo-se, ou seja, deslizando rumo aos objetos” (p.39). É precisamente esse movimento da consciência de superação, contestação, confrontação, questionamento e de resistência de si mesma que a diferencia do “em-si” que são os objetos que já estão prontos, acabados e lapidados no mundo não possuindo, portanto, condições de transcendência de si, a exemplo do copo, da tesoura ou de um sofá que só podem ser o que são.
O “para-si” ou a consciência não se constituem da mesma forma como o “em-si” porque não é previamente definida; nada os determinam ou os fundamentam em suas existências, visto serem livres e transcendentes. E transcender a realidade não é conformar-se a ela; não é esbarrar-se nos seus limites; não é aceitar o instituído, mas ir em direção à liberdade, à criatividade e à inventividade e, neste sentido, a imaginação é um pressuposto base para instituir novas possibilidades de existências. Dessa forma, o segundo capítulo da tese põe em evidência a questão da imaginação baseando-se em dois textos de Sartre: A imaginação e O imaginário que permitem aos leitores compreenderem “[...] o modo como o homem conhece sua realidade” (p.61).
A tese defendida por Liliane mostrou muito bem as críticas tecidas tanto por Hurssel quanto por Sartre em relação ao conceito tradicional de imagem, sobretudo na perspectiva da psicologia clássica e dos grandes sistemas filosóficos tradicionais, que a pensava como “[...] representação interna do objeto na mente do homem” (p.73), não a percebendo como uma intencionalidade da consciência para dar sentido ou compreender o mundo que a cerca. Como a imagem não é pura reprodução da realidade, a imaginação também não é compreendida, para Sartre, como pura e simples ação de internalizar, memorizar ou apreender conteúdos imagéticos pela mente de um sujeito expectador da realidade. A imaginação, para o filósofo francês, corresponde ao movimento, a ação e a iniciativa de criar o não criado; de experimentar o não experimentado; de viver o não vivenciado; de trilhar o não trilhado; de abrir-se ao fechado, isto é, lançar-se, permanentemente, por caminhos incertos e duvidosos assim como é a vida: marcada e determinada por nós mesmos sem existir um grande mentor metafísico que nos diga por onde seguir.
E como seria pensar uma educação pautada na imaginação, na criatividade, na inventividade, na transformação e na liberdade dos sujeitos? Partindo do pressuposto de que a imaginação é um futuro da ação; um projeto humano de contestação do real em busca do irreal ou, em outras palavras, de tornar ausente o presente e o presente ausente ou mesmo inventar radicalmente o inexistente, Liliane apostou em uma educação que não negue o imaginário, defendendo a ideia de que “[...] somente numa sociedade em que os homens são politicamente livres, as atividades do pensar, do agir, do ser-homem-no-mundo e do imaginar podem assumir a sua plenitude e desenvolver a sua potencialidade (p.103).
Para isso, a pesquisadora trouxe em sua tese de doutoramento a originalidade típica deste tipo de produção acadêmica ao defender uma educação que não seja pensada unicamente pelo viés do treino, da reprodução, do adestramento, da memorização ou da doutrinação de mentes e de corpos, mas uma educação que esteja pautada no pensamento e na ação dos sujeitos como atores livres para inventar a sua própria existência. A tese envereda-se por uma defesa de que a educação deva se estruturar como um permanente movimento de contestação, de questionamento dos limites da realidade, de não aceitação do estabelecido, do dado e do acabado, mas que se volte para superar as condições da existência e que esteja amparada pelo desenvolvimento da linguagem, da criação e do compromisso ético.
Pensar uma existência e, conseqüentemente, uma educação que esteja pautada pelo primado da imaginação, como bem ressaltou Liliane no subtítulo da tese, é conceber uma existência na qual se busque educar os sujeitos para buscarem a melhor versão de si mesmos no “[...] sentido do reconhecimento da diferença, do diverso, da justiça, do saber, do respeito, da ética, enfim, da convivência humana e social” (p.110). Assim, uma educação para a liberdade, como propõe a pesquisadora, é entender que estamos em constante processo de formação; que estamos sempre incompletos, inacabados e em construção e, por isso mesmo, dotados de várias possibilidades de existir e de explodir para o mundo, como diz Jean-Paul Sartre, em o Ser e o Nada.
A leitura da tese é indicada para todos os profissionais dos mais variados campo do saber, especialmente para aqueles inseridos no campo das Ciências Humanas e da Educação e que estejam dispostos a pensar para além de uma educação comprometida com a formação técnica, racional e instrumental que tem levado os sujeitos à conformação e à estagnação de pensamento. Esta tese, por assim dizer, é direcionada para aqueles que queiram vislumbrar uma educação questionadora, interrogadora, provocadora e contestadora da realidade que levem os sujeitos ao melhor conhecimento de si e de toda a humanidade ao seu redor não apenas para aceitar o mundo tal qual ele é, mas, sobretudo, para criá-lo, imaginá-lo, inventá-lo, fabricá-lo e reformulá-lo quantas vezes forem necessários para dar sentido às suas existências.
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